RIO DE JANEIRO – Desde que deixou de emprestar o proverbial talento à novela Império, a atriz Leandra Leal pega um breve engarrafamento do Jardim Botânico, onde vive, e se manda, todas as tardes, para a Lapa. Depois de se identificar rapidamente ao porteiro de um condomínio moderno em contraste com a antiga zona do baixo meretrício boêmio carioca, toma uma água ou uma Coca Zero (“Nunca bebo isso em casa!”), no oitavo andar de uma das torres, e se senta ao lado da pernambucana Natara Ney.
Diante delas, estão três monitores de computador. Jornalista, carnavalesca de ofício e filha da recém-falecida Maria Ana, também conhecida como a Ana Punk, pelas madeixas pintadas de azul, que fez história entre jornalistas boêmios dos anos 1990 com seu Pé de porco, o boteco joia do bairro olindense de Ouro Preto, Natara está editando o primeiro salto para a direção da atriz que é uma das melhores, da sua e de outras gerações. “Quando soube do projeto, fiquei imediatamente com vontade de fazer”, diz a pernambucana, sobre o longa Divinas divas em que Lelê – como é conhecida entre os amigos – preserva memórias e documenta a geração de travestis entre o glamour e a forca dos anos 1970 do Brasil, a “Geração Rogéria”. A pernambucana é, hoje, uma das mais solicitadas montadores do cinema nacional.
Leandra conheceu Natara através do amigo em comum e cineasta Lírio Ferreira. Algumas festas e mesas de botequim depois, convidou-a para trabalhar pela folha de serviços prestados e a boa fama conquistada entre os diretores de cinema do Rio de Janeiro. “Natara é uma das pessoas mais generosas que conheço, coisa rara hoje em dia. Ela é muito suave, muito gentil, incansável, uma figura que vai além do que tem que ser feito. Sem falar que tem um conhecimento e uma autoridade na montagem que me dão uma grande segurança. Afinal, eu sou uma atriz. Agora, uma atriz que por acaso está dirigindo”.
Desde que se mudou para o Rio de Janeiro depois de montar o elogiado Rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas, no comecinho da já distante década de 1990, Natara foi, pouco a pouco, um curta aqui, um longa ali, montando um portfólio com uma quantidade de longas de que nem se lembra mais. Entre os mais recentes, está Pernamcubanos. Entre os mais delicados, Mistério do samba (2008), uma abordagem poética e carinhosa da velha guarda da Portela com produção e apresentação de Marisa Monte e direção de Lula Buarque de Hollanda e Carolina Jabor. Com o filme, ganhou o prêmio Melhor Montagem - Grande Prêmio Brasil com Mistério do Samba, uma entre as várias estatuetas de sua estante.
Desde menina, Natara sabia que queria contar histórias. “Tentei até fazer teatro”, diz ela que, jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco, acabou indo trabalhar na TV Pernambuco, então em reestruturação por Guel Arraes – o pernambucano que desencaretaria a linguagem da televisão brasileira com pequenas revoluções como o seriado Armação Ilimitada.
Eleito governador de Pernambuco em 1986, com direito a jingle gravado por Chico Buarque na campanha, e mais de 20 anos depois de ter sido cassado pelo Golpe de 1964, Arraes recrutou o filho para reerguer a TV estadual. Com Guel, a estatal recebeu uma equipe formada por nomes como Paulo Caldas, que fazia um programa com Reginaldo Rossi; Gilson Martins e Lírio Ferreira. O diretor de Sangue azul, atualmente em cartaz nos cinemas, coordenava um programa sobre curtas metragens. “Eu queria mesmo contar histórias, não sabia nunca que poderia fazer cinema, por isso pensei logo no jornalismo”, lembra. Logo, Natara estaria nas ilhas de edição da emissora. Depois de alguns poucos e escassos curtas, como outro profissional não pôde assumir a tarefa, Natara acabou convidada para montar O Rap...(2000), documentário de Caldas e Marcelo Luna sobre a trajetória de dois jovens das periferias do Recife.
A vontade de estar perto do cinema a levou ao Rio. “Morei na casa de todo mundo, em sala, quarto, banheiro, onde tinha lugar, eu morava”, ri. Mas o novo presidente Fernando Collor de Melo acabou com a Embrafilme, estatal então responsável pela distribuição de verbas no cinema brasileiro, e Natara viu a tela escurecer diante dos sonhos. Arrumou a mala e foi, então, comer acarajé na campanha de Antônio Carlos Magalhães para o governo da Bahia - em quem, aliás, jamais votaria. “Foi um trabalho. Mais que um dinheiro necessário naquele momento, me deu uma velocidade de raciocínio enorme, uma grande velocidade de trabalho. Tinha que editar 25 minutos de programa por dia”, ela diz.
Ali, Natara conheceu Jacinto dos Santos, o saudoso Feijão, diretor de fotografia do Baile perfumado. “Ele foi um dos meus professores”, diz ela, que “estudou” montagem fazendo assistência para gente como Vania Debs. “Hoje, quase ninguém mais faz assistência de edição”. Com o fotógrafo de cinema Gustavo Radiva, Natara pegou o hábito de examinar Caravaggios, Boticcellis e outros clássicos renascentistas para entender luz e composição. “Não tenho um método, aprendi fazendo”. Se não tem um método, Natara tem pelo menos uma característica. Envolve-se com o filme muito além da edição. Longa sobre similaridades culturais entre Pernambuco e Cuba, Pernamcubanos, por exemplo, ela acha que não foi visto por quem deveria. Organizou, então, um projeto em que percorre comunidades de afro-descendentes das periferias do Rio de Janeiro exibindo o doc.
No filme de Leandra, Natara não esperou o material chegar à ilha. Foi pro set acompanhar entrevistas e performances. “Ela parece ter muito mais propriedade, assim, para escolher um depoimento e não outro. Conhece o personagem para além do que vê ali no computador”, elogia Leandra. “Como ela é uma atriz, é muito bom o olhar de Leandra, porque ela não se importa apenas como o que está sendo dito, mas também a emoção, a forma como se está dizendo”, diz Natara, expondo outra de sua características: se adaptar ao ritmo do diretor. Gosta, por exemplo, do timing de Rosane Swartzman, com quem montou Tainá e séries sobre adolescentes. “Ela não tem soluções agoniadas”, diz Natara, que agora trabalha também como diretora de seu primeiro documentário em longa metragem: a trajetória de um amor a partir das longas cartas trocadas por um casal, encontradas por ela numa banca do Centro do Rio de Janeiro. Até um detetive particular foi contratado, para dar conta dos personagens que teriam vivido em Goiás.
Natara mora na ilha. Depois de uns anos mantendo a produtora num imóvel do Jardim Botânico, a esquizofrenia imobiliária do Rio de Janeiro a obrigou a montar o aparato de edição – três monitores decorados com os bonequinhos de Wolverine que adora – na sala do apartamento comprado na Lapa. A pernambucana só pula fora da ilha quando, por exemplo, o amigo Otto faz um show no Circo Voador perto de casa. “Já fui a 200 e vou a todos. Minha criança adora encontrar a criança dele. Otto é um guerreiro, meu menino, é meu filho”, ela diz, sobre o amigo dos carnavais de Olinda de priscas eras. “A gente ficava fazendo macacada na rua, dançando, imitando os outros, pro povo dar cerveja pra gente”, gargalha.
“Natara Ney é minha irmã, amiga-mãe. Uma das maiores profissionais que conheço, dedicada aos amigos e uma criatura humana rara”, retruca Otto, parceiro da amiga do hoje ultra cultuado Me Beija que sou cineasta. Lírio, Natara e Otto faziam, há dez anos, o que pernambucanos fazem quando se encontram longe num pré-Carnaval: choravam entre chopes por não poderem vir a Olinda. “Aí Lírio sugeriu o bloco, com uma banda, pra gente nem desfilar, ficar ali parado no Baixo Gávea”, diz Natara. “Mas ele acabou conseguindo ir pro Recife, e eu segurei o bloco na estreia, fiz o que ele mandou, e botei uma banda tocando frevo, marchinha, diz ela, que todo ano promete parar. “É uma luta pra levantar dinheiro”, diz ela, todos os anos levantando verbas com a venda de camisetas enquanto os patrocínios não fecham. Além de cineastas de copo em riste, 11 de cada 10 starlets do cinema no Rio de Janeiro batem ponto no bloco. Com a amiga Camila Pitanga, Leandra Leal, por exemplo, costuma dar seus pulinhos na tertúlia que agora reúne milhares de foliões na Lagoa Rodrigo de Freitas.
“Conheci Natara numa viagem para um encontro nacional de estudantes de comunicação em Belém. Eu estudava jornalismo na UFPE e ela, na Unicap. Nosso primeiro alumbramento se deu lá mesmo, no corredor do ônibus. Desde então, esse oceano de ternura me acompanha em inúmeras peripécias: na televisão, no Carnaval, no cinema e, sobretudo, na vida. Companheira melhor, eu não teria. Ela é a única que consegue me deixar enlouquecido e sereno ao mesmo tempo, vulgar e silvestre”, derrama-se Lírio sobre a musa amiga. Mais um entre o bloco de cineastas que lhe pedem, sempre, beijos pela vida.