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segunda-feira, 24 de abril de 2017

“O golpe contra a democracia se traduz em conflitos no campo”, declara CPT

Relatório revela índices recordes de conflitos rurais, assassinatos e 

encarceramento de trabalhadores do campo no último ano


O militante do MST, Valdir Misnerovicz, problematiza a ação do Estado em encarcerar lideranças de movimentos populares. Foto Márcio Marquez. Assessoria deputado federal João Daniel.jpg
O militante do MST, Valdir Misnerovicz, problematiza a ação do Estado em encarcerar lideranças de movimentos populares. Foto Márcio Marquez. Assessoria deputado federal João Daniel

 
Por Lizely Bordes
Da Página do MST 

O aumento significativo de conflitos no campo possui relação direta com o desmonte do Estado brasileiro e da política agrária. É o que afirma a Comissão Pastoral da Terra (CPT) no lançamento da publicação anual Conflitos no Campo 2016, realizado na tarde do dia 17, em Brasília-DF, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Na avaliação da CPT o quadro do desmonte se substancia por ações como a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em maio de 2016, após o afastamento de Dilma Rousseff para prosseguimento do processo de impeachment pelo Congresso Nacional, bem como a diminuição dos recursos e equipe em órgãos responsáveis pela política no campo e floresta, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), e a composição majoritária do Congresso Nacional e cargos de confiança do Executivo de expoentes do setor ruralista.

O resultado do avanço de setores privados interessados na exploração da água, da terra e das matas impactou no aumento, em índices recordes, dos conflitos no campo.  “O golpe contra a democracia se traduz em conflitos no campo”, afirma o secretário da coordenação nacional da CPT, Antônio Canuto. 

“Os assassinatos e conflitos aumentaram muito. Camponeses, quilombolas, indígenas, quebradeiras de coco se sentiram abandonados e as forças armadas, milícias se reforçaram defendendo a grilagem dos grandes latifúndios. Os holofotes estão voltados pra Brasília”, complementa o secretário geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Leonardo Steiner.

No centro do conflito está a construção de progressivos obstáculos para efetivar o direito à terra para estas populações. Crítica permanente dos movimentos populares e organizações de defesa dos direitos, a política de distribuição de terras, não priorizada nas gestões anteriores, passa a ser orientada para atender à oligarquias locais e capitais internacionais.

Como ações centrais, as lideranças citam Medida Provisória (MP) 759/16, que estabelece novas regras para a regularização fundiária urbana, rural e da Amazônia Legal, o Projeto de Lei (PL) 4059/12 que versa sobre o fim das restrições de posse da terra por estrangeiros e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que transfere do Executivo para o legislativo a atribuição da demarcação de terras indígenas. Com exceção da MP que está sob debate por uma Comissão Mista, as outras duas matérias estão sujeitas à votação pelo Plenário a qualquer momento. Com bancada majoritária no Congresso Nacional - 207 dos 513 deputados e 32 dos 81 senadores, como registra a Agência A Pública - a aprovação destas medidas atende a interesses diretos deste setor, apontam as organizações.

Progressão nos índices de violência
               
A análise dos dados dos conflitos de terra, água e por direitos trabalhistas revela um progressivo aumento da violência envolvendo trabalhadores da terra, isto é, diversas categorias de camponeses, indígenas, assalariados rurais, comunidades tradicionais e pescadores artesanais. Em 2016, a partir do trabalho de campo de 700 agentes da CPT em colaboração com movimentos populares, foram registrados 1.536 conflitos, envolvendo 909.843 famílias. No ano anterior, os índices respondiam por 1.217 conflitos e 816.837 famílias – um incremento de 26% no número de conflitos.

O relatório revela com destaque a elevação dos crimes contra a vida. O número de assassinatos aumentou em 2016 em 22% em relação ao ano anterior. Em 2015, 50 trabalhadores rurais foram assassinados. Já em 2016, o número corresponde a 61 mortes. A maior parte dos assassinatos, cerca de 79%, ocorreu na Amazônia Legal, área que compreende os estados da região Norte somados os estados do Maranhão e Mato Grosso. A área, de grande interesse dos setores ruralistas pela potencialidade de exploração, também responde pela maior parte das tentativas de assassinatos (68%) e ameaças de morte (86%). Neste cenário, destaca-se o estado de Rondônia, com maior número de assassinatos e segundo em ameaças de mortes e agredidos.

Ações como a recente autorização de entrega da Reserva Nacional de Cobre e Associados (RENCA), na Amazônia brasileira, para fins de extração mineral, pela Portaria 128, de 30 de março deste ano, deve acentuar a tensa relação nos territórios de interesse de exploração econômica no ano de 2017. Residem nesta área reserva duas Terras Indígenas (Paru e Waiãpy), duas Unidades de Conservação (Montanhas do Tumucumaqui e Jari) e quatro projetos de assentamentos do INCRA (Maraca, Munguba, Pedra Branca e Perimetral).
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Infográfico violência no campo 2016

Impunidade
               
Uma marca que os conflitos do campo carregam é a baixa responsabilização penal. Dos 1.387 casos ocorridos no período de 1985 a 2016, vitimando 1.834 pessoas, apenas 112 foram julgados. O sujeito maior na realização do crime, o mandante, foi poucas vezes punido – apenas 31 mandantes de assassinatos foram julgados e presos. De acordo com a Ouvidoria Agrária Nacional, órgão vinculado ao Incra, o baixo número de conclusão dos julgamentos deve-se a fatores como deficiência de recursos materiais e humanos, demora do andamento dos inquéritos policiais e dos julgamentos, ausência de autoria dos inquéritos, entre outros. 

“Se hoje o caso da minha mãe não foi só mais um foi graças a visibilidade dada ao caso. Mais de 90% ficam na impunidade”, declara a advogada Divanilce de Souza Andrade. O assassinato  recebeu manifestação de condenação pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), e foi intensamente denunciado por movimentos sociais Dulce Magalhães, conhecida como Nicinha, desapareceu em 07 de janeiro de 2016. Seu corpo foi encontrado no lago da barragem da Usina Hidrelétrica Jirau, em Porto Velho (RO), após 5 meses do desaparecimento. 

A filha advogada que integrou a assessoria jurídica da equipe de acusação lista um conjunto de erros na condução do processo e investigação. Lentidão nas investigações, perícia com falhas, adiamento de audiência pela não indexação de exame de DNA, contradição não apurada nos depoimentos dos réus, são algumas das falhas apontadas por Divanilce. “No dia do velório da minha mãe [21 de dezembro] tivemos dificuldade de acesso aos ossos. Quando chegamos no IML, a sala onde estava os ossos estava fechada. Teve que ser arrombada. É um descaso humano”, lamenta. 

Nicinha era uma importante liderança no estado na defesa das populações atingidas pela construção de barragens. Das denúncias que fez sobre violações de direitos humanos pelo consórcio Energia Sustentável do Brasil (ESBR), responsável pela UHE Jirau, duas geraram inquéritos civis pelo Ministério Público Federal e Estadual. A área em que residia antes de seu assassinato não dispunha de energia elétrica e água potável.

De acordo com Relatório, os conflitos pela água triplicaram em seis anos – correspondendo a 172 conflitos em 2016, um aumento de 27% em relação ao ano anterior. A apropriação da água por setores econômicos está no centro desta progressão. “Nos últimos anos os conflitos têm relação com a privatização. São várias as ações que buscam mudar o conceito de água de bem comum para bem natural escasso que tem que ser controlado pelo preço”, revela a coordenadora nacional da CPT, Jeani Bellini. Nesta lógica, ela cita a privatização em curso do Aquífero Guarani. A área que compreende as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país e também parte de Argentina, Uruguai e Paraguai, é de interesse de conglomerados nacionais como Nestlé e Coca-cola. Denúncias recentes das organizações revelam que representantes do governo Temer têm realizado encontros com estes grupos econômicos.
A advogada Divanilce Andrade relata a violência pelo Estado na responsabilização do assassinato à sua mae, Nicinha. Foto Márcio Marquez. Assessoria deputado federal João Daniel.jpg
A advogada Divanilce Andrade relata a violência pelo Estado na responsabilização do assassinato à sua mae, Nicinha. Foto Márcio Marquez. Assessoria deputado federal João Daniel

Encarceramento
               
Outro dado revelador no monitoramento realizado pela CPT é o aumento em 185% de presos em 2016, totalizando 228 pessoas encarceradas em razão da luta pela àgua, terra e floresta. No ano de 2015, o registro foi de 80 pessoas.

Na avaliação do geógrafo e militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Valdir Misnerovicz, o aumento de casos de prisão dos trabalhadores rurais é revelador da ação do Estado em tentar tornar criminoso o defensor do direito à terra. “Este aumento, além de ser revelador, é um indicativo de tendência ao encarceramento porque as respostas das forças contrárias à democratização da terra pelo Estado é a prisão, quando não o assassinato. É uma tentativa de criminalizar a luta, a luta sendo tratada como caso de polícia e não a reforma agrária como questão da política pública”, defende. Reconhecido internacionalmente como defensor da reforma agrária popular, Valdir responde, conjuntamente com mais três militantes, a um processo com base na Lei de Organizações Criminosas (nº 12.850/2013) na comarca de Santa Helena, interior de Goiás. O processo de refere à ocupação de uma parte da Usina Santa Helena, em recuperação judicial, onde há mais de 1.500 famílias ligadas ao MST.

Em outubro de 2016 o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus a Valdir, privado de liberdade deste maio daquele ano.  Os ministros avaliaram que não há justificativa técnico-jurídica para a manutenção da prisão durante o trâmite do processo e destacaram que integrar um movimento social de luta não se configura como crime.

Outro caso emblemático de 2016 envolvendo o encarceramento de trabalhadores rurais em conflito de terra foi a “Operação Castra”, deflagrada em novembro daquele ano nos estados do Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul em acampamentos do MST e na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema-SP. 

Como resultado da operação, vinte e quatro pessoas respondem por ações penais no Ministério Público do Paraná, sendo algumas não integrantes do Movimento. Neste momento, 08 estão presas preventivamente. Com um conjunto de erros na condução do processo pelo Sistema de Justiça, como a ordem de prisão preventiva expedida antes da finalização das investigações, e dada a complexidade do processo, com alto número de réus e fatos implicados, a defesa avalia que trânsito do processo até o julgamento deve se estender por um período significativo. 

“Na operação Castra fica nítido as prisões das pessoas em caráter preventivo não têm fundamento legal algum, se baseia na necessidade abstrata de defender uma genérica ordem pública, com argumentos preconceitos, afirmando que o fato de serem de movimentos sociais e acampados seria um indício de que em liberdade poderiam se evadir, se esconder em outros acampamentos”, avalia a advogada popular da organização Terra de Direitos, Rafaela Lima. Para dialogar com a população na disputa de narrativas com os meios de comunicação privados locais alinhados ao grupo interessado na posse das áreas ocupadas, foi lançada a Campanha Meu Crime é lutar. “A Campanha visa denunciar o processo de criminalização de defensores de direitos humanos em nosso país, dando, num primeiro momento, especial enfoque a situação dos presos e presas políticas do MST no Paraná”, relata a advogada.

Violência institucional-legislativa

Assumida como uma forma de violência contra os trabalhadores rurais, o Relatório analisa também os projetos de lei e emendas propostas por parlamentares ligados ao agronegócio. O geógrafo Marco Antônio Mitidiero, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), relata que o monitoramento dos PLs resgatados ou criados em 2016 pelos parlamentares revela a reincidência do termo “segurança jurídica” como justificativa de garantia das condições ao desenvolvimento. “Para o campo isso significa insegurança jurídica e social”, diz. Ele exemplifica o uso do termo na PL 6442/2016, de autoria do deputado federal Nilton Leitão (PSDB-MT),  atual presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que institui normas reguladoras para o trabalhador rural. “Esta PL pega todos os pontos da atual legislação para o rural, ataca o trabalho assalariado. Eles falam que a legislação trabalhista é uma forma de insegurança jurídica ao agronegócio”, analisa o pesquisador

O relatório revela o aumento de matérias de interesse dos ruralistas após a destituição de Dilma. “Em 2016, ano do Golpe, além do desarquivamento, novas propostas pipocaram no Legislativo e Executivo. Foram 11 novos projetos e propostas no âmbito das leis e 29 Decretos Legislativos para reversão de conquistas e retomadas de terra, totalizando 40 ações de ataque aos homens e mulheres do campo”, aponta. 


De acordo com a CPT o Relatório será entregue nos próximos dias para os órgãos de governo. Uma versão mais enxuta, em formato tabloide, foi produzida para o trabalhador

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