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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Um Defensor Público faz uma análise sobre a cotidiana banalização do mal

Quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Eduardo Newton
Defensor Público





“Eu fico com a pureza da resposta das crianças”
Gonzaguinha

É com a poesia do “menino criado no São Carlos” inicio uma análise sobre a percepção de um dia arrastado em um prédio forense parcialmente fechado e que, em razão dos Jogos Olímpicos (Rio 2016), funciona em regime de plantão.
Um comentário marginal: será que a Justiça pode esperar? E que não se invoque a existência do “plantão judiciário”, pois atos processuais serão realizados no curso de 24 (vinte e quatro) dias, isto é, quase 1 (um) mês sem audiências, sem juntadas de petições, sem realizações de citações e intimações, sem expedições de mandado de pagamento; enfim, sem a plena atividade jurisdicional.
Voltemos ao asséptico e vazio ambiente forense, pois 26 adolescentes supostamente em conflito com lei foram “apreendidos” – sim, ainda não conseguimos compreender a Doutrina da Proteção Integral, e, por essa razão, crianças e adolescentes são “apreendidos” como se coisas fossem, desprezando a condição de sujeitos de direitos – e aguardam ser entrevistados pelo Defensor Público.
Há uma dificuldade inicial em encontrar o local da custódia daqueles que gozam de uma proclamada constitucionalmente prioridade absoluta. Estariam em qual carceragem? Em dado momento, o Defensor Público, ou seja, eu, indaga aos quatros cantos: quem seria o “Mr. M” responsável pelo desaparecimento dos adolescentes - o tom era uma mistura de ironia com um desabafo. Após muito perambular pelo Palácio da Justiça, os integrantes do grupo vulnerável são encontrados. Dispenso o parlatório, prefiro o encontro na própria carceragem.
O local está limpo; no entanto, me choco com o estado físico daqueles que tiveram a sua liberdade ambulatória privada por ordem de algum agente estatal. Porém, antes de falar do estado físico – e fico a pensar na saúde psicológica deles – quem não surtaria naquele local? – me vem a mente uma insistente pergunta: por que toda carceragem possui o mesmo cheiro? Em tempos em que as grandes narrativas já não podem prosperar, fico a pensar se não seria o momento de pensar sobre a teoria geral dos odores e, assim, alguém teorizasse sobre a fragrância própria de quem já conheceu o cárcere. Talvez, quem se embrenhe por essa seara corrobore uma intuição minha: é pelo aroma que se desenvolve o processo de estigmatização da pessoa privada de liberdade.
Todavia, não é o fedor que me assombra, e sim a presença de pessoas agredidas dentro de cada um daqueles cubículos, que são chamadas de celas.
Cada um daqueles seres estropiados trazem consigo uma versão sobre os fatos. Confesso que algumas se mostram excessivamente criativas, mas não é sobre a inventividade dos adolescentes que escrevo. Elaboro essas linhas em razão da banalização do mal, pois é esse o denominador comum das narrativas verossímeis e das ficcionais.
Duas situações merecem que o carbono marque essa folha com que escrevo esse amontoado de palavras. Na primeira, José – nome fictício – é inquirido pelo presidente do ato processual e, em seguida, pelo titular da ação socioeducativa sobre os fatos examinados pela autoridade policial. Porém, em nenhum momento seu rosto desfigurado é objeto de curiosidade mínima. Eu, talvez por não possuir as lentes da invisibilidade pelo grotesco, desprezo os fatos apurados e, fitando o adolescente, apresento dois “inconvenientes” questionamentos: quem realizou isso no seu rosto? e as pessoas que realizaram esse ato foram levadas para a Delegacia de Polícia?
As respostas foram diretas e certeiras no estômago de quem ainda não havia compreendido onde a “Justiça” poderia ter parado. O garoto disse que foi agredido pela população, que bateu duro em um “trombadinha” roubador, e que ninguém havia sequer sido levado para prestar de depoimento diante do Delegado de Polícia.
Na segunda cena, João - o nome fica ao gosto do leitor que até aqui ainda teve paciência de ler uma narrativa não ficcional - alega que sua “apreensão” foi forjada, detalhe que é ouvido sem qualquer valor. Além desse aspecto, eu havia guardado na mente aquele rosto, pois, após perambular por aquele prédio público, havia encontrado o adolescente em um canto da cela com o rosto inchado na região esquerda de sua maçã. Mais uma vez se inicia o ato processual e o que importa é saber se o ouvido participa, ou não, de organização criminosa que explora atividade do tráfico. Aquele rosto parece envolvido com uma incômoda e “mágica” invisibilidade, que somente não se mostra capaz de enganar o chato do Defensor Público. Antes que a lógica fordista se materialize com o pregão de uma nova audiência, eu apresento o “impertinente” questionamento sobre como aquele machucado “surgiu”. De maneira seca, e somente porque oriunda daquele que foi tido pelos versos iniciais transcritos como um ser puro, a resposta apresentada afirma que foi vítima de um policial militar e, inclusive, declina o nome do mesmo.
Nessas duas situações, o silêncio após as respostas se apresentou constrangedor. Na verdade, naqueles momentos foi possível reconhecer o “barulho do silêncio. Marcia Tiburi trata da questão da filosofia ir além do visível, o que se mostra importante em uma sociedade cujas relações sociais são mediadas por imagens – a sociedade do espetáculo:
Neste sentido, fazer filosofia é trabalhar com os modos de ver e do ver a si mesmo na direção de ‘ver mais’, pressupondo-se que o ver implica o não visto e o invisível que se espera capturar em sucessivos atos de descortinamento [1]
Ora, nessa tentativa de descortinar o obscuro, mostra-se oportuno recorrer aos ensinamentos de Agambem sobre a figura do homo sacer, isto é, aquele que, na Roma Antiga, era condenado por um crime, não sendo lícito matá-lo, mas, se alguém o fizesse, não seria punido como homicida. O que seriam esses adolescentes? O “natural” desprezo às suas integridades físicas não seria a pós-moderna e tupiniquim versão do homo sacer? Além do mais, essa postura somente mostra que o mal se encontra banalizado e naturalizado em nossa sociedade.
E o que é pior: como essa vida sacrificável subsiste em um Estado que se diz Democrático e de Direito e cujo primado da dignidade da pessoa humana está positivado? Quem sabe não seja o momento de fazer vale os versos que iniciaram esse texto, pedindo que a pureza das crianças nos afaste da banalização do mal.

Eduardo Januário Newton é Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito. Foi Defensor Público do estado de São Paulo. Email: newton.eduardo@gmail.com.

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