A autocritica não é um fim em si mesmo, não é um ato expiação religiosa para exorcizar um mal. É parte do indispensável balanço político que qualquer força política tem que fazer.
O balanço do PT é o mais importante, porque foi a força política que dirigiu o processo mais importante que o país já viveu, ao longo de mais de 12 anos. Outras forças, que se equivocaram redondamente desde o começo desse processo, acreditando que ele não seria possível, não fizeram autocrítica e com isso se tornaram partidos irrelevantes.
O balanço do PT tem que começar pelo sucesso do projeto que tinha a audácia de combater o neoliberalismo, ao qual havia resistido, junto a outras forças do campo popular, por mais de uma década. Um projeto na contramão das fortes tendências internacionais, que afirmavam esse modelo nos EUA, na Europa, no Japão e na grande maioria de países da própria América Latina.
O PT e os outros partidos que se aliaram a ele captaram a natureza essencial das lutas políticas do nosso tempo: a luta pela superação do neoliberalismo, o modelo assumido pelo capitalismo neste período histórico. Os que não compreenderam essa centralidade não entenderam a natureza do período histórico atual e se tornaram intranscedentes.
Para avançar na superação do modelo neoliberal, os governos do PT centraram sua ação em três direções: prioridade das políticas sociais ao invés da prioridade neoliberal no ajuste fiscal; prioridade das políticas de integração regional e intercambio Sul-Sul ao invés da prioridade neoliberal dos Tratados de Livre Comercio com os EUA; resgate do papel ativo do Estado ao invés do Estado mínimo do neoliberalismo, acompanhado da centralidade do mercado.
Para colocar em prática essa política, Lula montou a arquitetura que a tornou possível, mesmo com a esquerda em minoria no Parlamento: um bloco social que contava com parte do empresariado e um bloco político, sob a hegemonia do programa PT mencionado acima. Ao invés das visões pré-políticas, pré-gramscianas, que recusam todo tipo de aliança social, os governos do PT conseguiram trazer o centro político para uma aliança hegemonizada por um programa antineoliberal, chave e condição indispensável para os extraordinários avanços que o Brasil viveu, no período mais importante até aqui da sua história.
(As visões que desqualificam todo tipo de aliança como “conciliação de classes” demonstram, além de uma visão moral e não política da construção de alternativas hegemônicas, uma imensa ignorância histórica. Todos os processos, revolucionários ou apenas radicais, fizeram amplas alianças: Rússia, China, Cuba, Vietnã, Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador. Sem as quais, não teriam sido possíveis. Sem alianças, restaria a estratégia de “classe contra classe”, que não trinfou em nenhum lugar do mundo. Seria a esquerda renunciar a se tornar maioria, impondo sua hegemonia a outros setores sociais. O que importa nas políticas de aliança é quem detém a hegemonia. No caso brasileiro, o sucesso dos governos do PT se deveu, também, à hegemonia do programa fundamental desse governo sobre os aliados. Renunciar a alianças, para a esquerda, é aceitar o sectarismo – a pior doença na esquerda, segundo Pepe Mujica – da pureza ideológica e da permanente derrota, o que acontece com setores da ultra esquerda no Brasil e na América Latina.)
Esse foi o acerto estratégico fundamental do PT: o acerto político que permitiu o Brasil viver um processo de profunda democratização social, de retomada do crescimento econômico com distribuição de renda e de desenvolvimento de uma política externa soberana, centrada na integração regional, que projetou o Brasil e Lula como lideranças fundamentais do Sul do mundo neste século.
Que questões não resolvidas se arrastaram ao longo do governo do PT e se tornaram obstáculos centrais na sua continuidade? Em primeiro lugar, a dificuldade em quebrar a hegemonia econômica do capital financeiro, um fenômeno global, que só poderia ter sido contornado se os países do Mercosul tivessem aproveitado o momento de grande homogeneidade, com a entrada da Venezuela, da Bolívia e a participação do Equador, para construir um modelo produtivo integrado, que permitisse sair da dominação do capital especulativo, circunstancia que não foi aproveitada e condenou a todos os países do Mercosul a ser vítimas da recessão internacional via especulação financeira.
Em segundo lugar, a evidente questão da formação monopolista da opinião pública por meio dos grandes grupos privados dos meios de comunicação. Não que fosse fácil sua ruptura, com um Congresso submisso a ela, assim como o Judiciário, mas os governos do PT fizeram pouco e, especialmente, não tomaram o tema como central para a consolidação da hegemonia de novos valores na sociedade. Este faro se tornaria finalmente determinante no golpe que terminou com esses governos.
Para destacar apenas as questões essenciais não resolvidas, a falta de uma reforma política, que o democratizasse, superando a dependência clientelista do governo em relação a um verdadeiro mercado partidário, em que a multiplicação de partidos não atende à indispensável pluralidade política e ideológica, mas à amarra do governo ao apoio clientelístico de formações sem definições ideológicas e políticas.
O tema da corrupção, embora instrumentalizado pela direita para criminalizar o PT, foi outro tema que não foi enfrentado, a ponto de permitir que a própria imagem do partido fosse revertida negativamente na opinião pública, com danos graves para a esquerda como um todo. A esquerda tem que ter um comportamento exemplar em relação aos bens públicos, à transparência na atuação dos seus governos e dirigentes, não se aceitando qualquer tipo de deslize num item que havia sido fundamental na luta do próprio PT em relação ao tema da ética na política. Os erros cometidos causaram e seguem causando enormes prejuízos ao PT e à esquerda, tem que ser combatidos, apurados e levados adiante com a intransigência que tantos governos do PT em nível estadual e municipal continuam a seguir, mantendo seu prestigio e a confiança da população em distintas regiões do país.
No seu conjunto, o projeto do PT deu certo, sobretudo porque ele recebeu uma pesada herança do governo de FHC – entre elas uma profunda recessão econômica, o desmonte do Estado, a fragmentação social – e no marco de uma hegemonia neoliberal, na contramão do que se passou a colocar em pratica no Brasil e em outros países da região.
O balanço geral é amplamente positivo, a ponto de ter realizado as transformações sociais mais importantes da história do país, de ter liderados os processos de integração regional através do Mercosul, da Unasul e da Celac, além do papel determinante que o Brasil teve na formação dos Brics, do seu Banco de Desenvolvimento e do seu fundo de reservas. Além do resgate do prestigio e do papel ativo do Estado.
O prestigio do Lula é resultado de tudo isso. Ninguém pode fazer um balanço desse período sem levar em conta esse prestigio, parte indissociável do patrimônio da esquerda no Brasil. Lula é um enigma, quem não consegue decifrar seu significado – como aconteceu com a direita e a ultra esquerda – é’ devorado por ele. A preservação do seu imenso apoio popular, o fato de que seja o único dirigente nacional com esse apoio, faz parte do sucesso dos governos do PT. Quem não explica esse fenômeno não entende o essencial vivido pelo Brasil no período histórico atual.
O golpe foi resultado de renovados ataques da direita e de erros do governo, que o enfraqueceram. Já foram feitas análises, praticamente consensuais na esquerda, sobre a política econômica do segundo governo Dilma, sobre os erros na coordenação política, ao que se deve acrescentar as falhas da esquerda no seu conjunto – partidos e movimentos sociais – em impedir que a direita elegesse um Congresso bastante mais conservador que os anteriores, fator que terminou sendo decisivo tanto na aprovação do golpe, quanto dos enormes retrocessos que continuam a ser aprovados.
O balanço político do PT, num período ainda decisivo de disputa sobre o futuro do Brasil nestes dois anos, não pode ser condicionado por acertos de contas entre tendências, por rancores acumulados, por atitudes vinculada a trajetórias politicas individuais. A postura do ex-presidente Lula nesse sentido é, mais uma vez, exemplar, porque unitária, generosa nas atitudes e nos diálogos, serve como referência para a reconstrução da hegemonia da esquerda no país.
Por Emir Sader, sociólogo e cientista político, para o Brasil 247.
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