É preciso reconhecer que nenhum brasileiro alfabetizado, em gozo de sua saúde mental, ficou surpreso com a decisão de Sérgio Moro, que aceitou denúncia contra Lula na Lava Jato. Era previsível como a chegada da noite no fim do dia.
Lula é acusado de ser o verdadeiro proprietário de um triplex no Guarujá – mas sequer as testemunhas ouvidas em audiência em Curitiba, que deveriam fornecer as principais provas dessa propriedade oculta, cumpriram o que era esperado. Foram três pessoas envolvidas na venda e na reforma do apartamento. Uma delas estava presente no dia em que Lula esteve no local.
Além de frases essencialmente especulativas, como um “provavelmente”, o máximo que o interrogatório conseguiu arrancar foi um “ouvi o boato”, frase que poderia ser pronunciada por toda pessoa que tivesse assistido a qualquer telejornal sobre o assunto. Nunca, em momento algum, ouviu-se dizer que o imóvel pertencia a Lula. Sempre, que era propriedade de um diretor da OAS. Aquele episódio que, em boa fé — argumento que Moro empregou para defender a aceitação de provas ilícitas — poderia ser um momento chave do caso terminou na derrota por 3 a 0 da acusação. Por isso, pela decepção e pelo anti-climax, os depoimentos não deram manchete nem os telejornais mostraram gravações em tom de alarde.
Só ajudaram a formar a vergonhosa jurisprudência do espetáculo exibido na semana passada. Como nunca será demais lembrar, se admitiu que se acusa sem prova — com base na convicção, distinção essencial para o Direito e para o destino dos homens, pois uma pessoa pode estar absolutamente convencida da existência de Deus e do discurso feito em nome d’Ele, mas, salvo em ditaduras teocráticas, Sua palavra nunca será tomada como expressão da verdade nem da lei.
Mas esta foi a base para a decisão de Sérgio Moro sobre o triplex, numa decisão que “não significa juízo conclusivo”, mas sòmente “substrato probatório razoável”, como ele próprio reconhece, numa atitude de isenção aparente, exibida em outras decisões, que até agora não produziu nenhum efeito sobre sentenças anteriores.
Há na verdade uma questão política, como o próprio Moro registra, ao dizer: “não olvida o julgador que, entre os acusados, encontra-se ex-Presidente da República, com o que a propositura da denúncia e o seu recebimento podem dar azo a celeumas de toda a espécie”.
Aqui se localiza o centro da questão, a encruzilhada em que a Justiça e a política se encontram e irão decidir o destino do país num período próximo.
A pergunta decisiva é saber como o povo – essa multidão que reage nas horas de perigo e tem a capacidade única de sustentar as democracias – irá resistir a um novo ataque aos direitos elementares da maior liderança popular de sua história, o presidente que até agora não foi destronado como o mais aprovado desde a proclamação da República. É uma situação que só reforça a importância dos atos marcados para amanhã.
Convocados anteriormente, ganham um novo conteúdo e uma nova urgência a partir de agora, quando a perseguição aberta avança um pouco mais. Ao aceitar a denuncia, Moro trouxe o caso a seus cuidados, na 13a Vara Criminal de Curitiba, o que levou seus amiguinhos na mídia grande a ter dificuldade de esconder o próprio contentamento — sinal que, em situações de normalidade democrática, deveria ser visto com preocupação, mas que hoje é pura banalidade.
Para a maioria dos brasileiros, a questão é dar início a uma mobilização capaz de alterar a relação de forças das instituições políticas, num momento inteiramente desfavorável a defesa da democracia e as necessidades dos mais pobres. Os protestos de amanhã tem essa dimensão e alcance. Não têm capacidade de inverter inteiramente uma situação política. Mas podem produzir mudanças e alterar posições.
A decisão de Moro desmascara o golpe de Temer, revela o conteúdo real da violência da PM de Geraldo Alckmin, hoje o principal instrumento de estabilização do estado de exceção – o que se faz na porrada, é claro, típica de quem governa pelo medo.
Está em curso um processo histórico semelhante aquele que o país assistiu em 1947, quando o Partido Comunista — então a mais importante organização do movimento operário e popular do país – foi colocado na ilegalidade, dando nascimento a uma democracia seletiva que passou por tumultos e tentativas de golpes até vir abaixo em 1964.
Quem se choca com o tratamento diferenciado a Lula, ao PT e seus aliados, nos dias de hoje, precisa recordar que, meses depois do PCB ser colocado na ilegalidade, o mesmo tribunal eleitoral julgou e inocentou o fascismo brasileiro, representado pelos integralistas de Plínio Salgado.
Na vida real do Brasil de 2016, o confronto capaz de produzir “celeumas de toda espécie” estava definido antes mesmo da Lava Jato ter início.
Apareceu na AP 470, em 2007, quando, num telefonema o ministro Ricardo Lewandovski — nove anos depois, seria presidente do julgamento de Dilma – confessou que estavam tomando decisões contra os direitos dos réus porque se encontravam “com a faca no pescoço.”
Para estudiosos de Direito, essa situação que se vê hoje estava prevista no conhecido artigo de Moro sobre a Operação Mãos Limpas italiana.
Em 2004 – quando Lula mal iniciava o primeiro mandato – Moro já fazia referências à situação brasileira. Também reconhecia, no exemplo italiano, a necessidade de “deslegitimar” os políticos acusados de corrupção, sublinhando a importância de vazamentos a jornais, revista e TV: “ao mesmo tempo em que tornava a ação judicial possível, a deslegitimação era por ela alimentada.”
Após uma etapa intermediária, o golpe contra o governo Dilma, tenta-se agora atacar a fortaleza principal, a casa de força que pode produzir a eletricidade necessária para alimentar um movimento social que mal teve a oportunidade de transformar o país de acordo com as necessidades da maioria de seus habitantes. Lula não é só importante por ser quem é. Mas pelo que expressa, pelo que pode fazer e pode impedir que seja feito, enquanto puder manter os direitos políticos.
No plano dos direitos da população, o que se planeja é a construção de um capitalismo selvagem, do qual o país começou a se afastar na década de 1930. No plano dos direitos políticos, o projeto é um retorno a democracia seletiva do pós-Guerra, aquela que pariu um golpe militar quando o povo teve forças para lutar por um país onde pudesse viver com dignidade.
A diferença, enorme, é que estamos falando de outro processo histórico: um líder que foi duas vezes presidente da República e elegeu a sucessora, eleita duas vezes. Apesar de muitos erros e limitações, deixou uma herança de conquistas palpáveis e avanços reais. Obteve um reconhecimento que nenhum político brasileiro jamais alcançou nos últimos 50 anos. O retrocesso planejado, neste caso, deverá ser brutal e muito maior.
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