O sistema de proteção social brasileiro é o mais abrangente da América Latina, mas corre o risco de uma regressão se a sociedade e o Congresso aceitarem a reforma da Previdência esboçada pelo governo do presidente interino Michel Temer.
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, anunciou na segunda-feira 30 o envio ao Legislativo de uma proposta de emenda constitucional para fixar um teto de gasto para o setor, parte de uma reformulação geral provavelmente no estilo preconizado pelo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional entre as décadas de 1980 e 1990, de viés privatizante.
O encaminhamento da PEC aprofunda a desestruturação, iniciada nos anos 1990, do sistema instituído pela Constituição de 1988 e aponta para a reversão de conquistas obtidas na luta contra a ditadura. Há no País 24,5 milhões de aposentados e pensionistas, 8,6 milhões no meio rural, e dois terços recebem um salário mínimo por mês.
Segundo o governo, o principal problema das contas públicas é um déficit previdenciário crônico. Um diagnóstico longe do consenso. Consideradas todas as receitas previstas na Constituição, os saldos são positivos e suficientes para financiar todos os gastos do governo federal com previdência, saúde e assistência social, calcula a economista Denise Gentil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
“O resultado do encontro do total de receitas e despesas é amplamente superavitário, incluídos os gastos administrativos com pessoal, custeio e pagamento da dívida de cada setor. O superávit foi 56,7 bilhões de reais em 2010, 78,1 bilhões em 2012, 56,4 bilhões em 2014, e 20,1 bilhões em 2015, apesar das enormes desonerações tributárias realizadas nos últimos cinco anos.”
Nas contas do governo, entretanto, houve um déficit de 85,8 bilhões de reais, em 2015, precedido por saldos negativos de 56,7 bilhões no ano anterior, 51,2 bilhões em 2013, 42,3 bilhões em 2012, 36,5 bilhões em 2011 e 44,3 bilhões em 2010.
A discrepância entre os números decorre de uma manipulação. A Constituição de 1988 determina a elaboração de três orçamentos, o Fiscal, o da Seguridade Social e o de investimentos das estatais. Na execução orçamentária, entretanto, o governo apresenta só dois orçamentos, o de Investimentos e o Fiscal e da Seguridade Social, no qual consolida todas as receitas e despesas e unifica o resultado.
“Com esse artifício, não é possível identificar a transferência de recursos do orçamento da Seguridade Social para financiar gastos do orçamento Fiscal. Para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se, para efeito de análise orçamentária, o resultado previdenciário do resto do orçamento da Seguridade”, analisa Denise Gentil.
O diagnóstico do economista Milko Matijascic, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, segue a mesma direção. “A Constituição é ignorada e está na hora de fazer uma prestação de contas que respeite as instituições legais”, disse em encontro de entidades de trabalhadores.
“A manobra contábil adotada pelos formuladores das políticas econômicas dos anos 1990, que não trata a seguridade como um todo e desvia parte de seus recursos para outros fins, tornou a Previdência a principal vilã, responsável pelos desajustes nas contas públicas, embora isso não faça sentido pelo prisma legal.”
A deturpação de informações é chave para incutir uma ideia depreciativa do sistema, de insolvência e de precariedade generalizada, sem correspondência na realidade, aponta Denise Gentil.
Um dos principais usos do dinheiro desviado das receitas é o pagamento de juros da dívida pública. “O problema mais importante das contas públicas não é a Previdência, mas uma conta de juros extremamente elevada”, aponta o economista Amir Khair, ex-secretário de Finanças da Prefeitura de São Paulo e consultor em entrevista concedida em fevereiro a esta revista.
“Em 2015, os juros foram responsáveis por 80% do déficit do setor público, mas isso não é discutido porque a mídia interditou o debate sobre a questão fiscal. Dificilmente se verá nos meios de comunicação a expressão déficit nominal, mas, em qualquer outro país, é o que mede o déficit, e consiste na soma do déficit primário e do déficit com juros.”
As visões opostas sobre as contas correspondem a interesses de classe antagônicos, conclui um trabalho do economista Eduardo Fagnani, da Unicamp. “As conquistas do movimento social das décadas de 1970 e 1980 contrariaram os interesses dos detentores da riqueza. Em grande medida, isso ocorreu porque mais de 10% do gasto público federal em relação ao PIB foram vinculados constitucionalmente à seguridade social.”
Para Fagnani, coordenador da rede Plataforma Política Social, “desde a Assembleia Nacional Constituinte aqueles setores desenvolvem ativa campanha difamatória e ideológica orientada para demonizar a Seguridade Social, em especial o seu segmento da Previdência, com gasto equivalente a 8% do PIB”.
Os constituintes de 1988 vincularam recursos do orçamento da Seguridade Social para evitar uma prática corrente na ditadura, de captura, pela área econômica, de fontes de financiamento do gasto social. Para surpresa de muitos, os governos democráticos, a partir de 1990, dilapidaram aquela conquista.
Os interesses em jogo raramente vêm à tona. A defesa do aumento da idade para aposentaria, apresentado como opção única diante do aumento da expectativa de vida, é um artifício para dissimular a busca pela ampliação do espaço das empresas privadas no mercado previdenciário, argumentam Deen Baker e Mark Weisbrot, do Economic Policy Institute, no livro Seguridade Social, a Crise Falsa.
“Não há dúvida quanto ao enorme interesse do sistema financeiro na privatização da Seguridade Social. Ele investe na produção de ideias necessárias para propiciar essa transição.”
Entre os recursos da Previdência desviados das finalidades originais constam as desonerações concedidas às empresas, mencionadas acima. “As renúncias de receitas decorrentes dos ‘gastos tributários’ geraram uma perda de arrecadação estimada em 986 bilhões de reais entre 2010 e 2014, sendo 136 bilhões ‘garfados’ ao orçamento da Seguridade Social somente em 2014”, calcula a economista Lena Lavinas, da UFRJ.
Além da possibilidade de tornar a Previdência superavitária com o fim dos desvios de receitas e das renúncias fiscais, é possível elevá-las de modo substancial e aumentar a abrangência da proteção social, argumentam o economista José Dari Krein e o auditor fiscal do Trabalho Vitor Araújo Filgueiras, pesquisadores do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho do Instituto de Economia da Unicamp, em estudo recente.
A formalização do trabalho assalariado sem carteira assinada acrescentaria ao orçamento anual 47 bilhões de reais, o fim da remuneração “por fora” aos trabalhadores 20 bilhões, o reembolso pelas empresas das despesas com acidentes de trabalho 8,8 bilhões, a extinção do enquadramento de acidentes de trabalho como doenças comuns 17 bilhões, e a eliminação das perdas de arrecadação por subnotificação de acidentes, 13 bilhões.
Segundo os pesquisadores, os números evidenciam que “as contribuições previdenciárias são brutalmente sonegadas pelas empresas no Brasil”.
As cifras do governo sobre o suposto déficit recorrente do sistema estão em questão e as distorções levaram o presidente do Sindicato Nacional dos Aposentados, João Batista Inocentini, a definir como proposta única da entidade, “refazer todas as contas da Previdência”. Uma iniciativa necessária e urgente, diante das evidências apresentadas.
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