Daniel Cassol
de Porto Alegre (RS)
O ex-governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra. Foto: Carlos Kilian/ALESC |
Desde quando criticou as “más companhias” que teriam levado o PT a enveredar pelos caminhos ortodoxos da política, Olívio Dutra vem sendo uma das vozes internas críticas ao processo de inflexão conservadora do próprio partido. Fundador do partido, primeiro prefeito petista em Porto Alegre, governador do Rio Grande do Sul entre 1999 e 2002 e ministro das Cidades no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Olívio Dutra faz um balanço realista dos dez anos de PT no governo federal.
“Não mexemos na estrutura deste Estado, que continua sendo uma cidadela dos grandes interesses econômicos e culturais”, afirma. Em entrevista ao Brasil de Fato, Olívio, que esteve presente no lançamento do jornal durante o Fórum Social Mundial em janeiro de 2003, em Porto Alegre, reconhece os limites da gestão petista, que começou naquele mesmo mês. “Temos uma grande dívida pela frente, mesmo que tenhamos conquistado melhores condições de vida e de protagonismo político de milhões de brasileiros“, reconhece, defendendo que o partido e a esquerda retomem o debate sobre as transformações necessárias na sociedade brasileira.
Além de um balanço dos últimos dez anos, o ex-governador gaúcho apontou os limites da experiência petista, os desafios da esquerda e não deixou de reforçar sua posição sobre a postura do partido em relação ao “mensalão”: “O PT jamais poderia ter feito isso mas pode, daqui para frente, se assumir como partido da transformação e não da conciliação”.
Brasil de Fato – O Brasil de Fato foi lançado em janeiro de 2003, logo após a posse de Lula, durante o Fórum Social Mundial. O primeiro número do jornal trazia uma entrevista com o economista Celso Furtado e a manchete: “É preciso coragem para mudar o Brasil”. Passados dez anos do projeto do PT no poder, houve necessária coragem para as mudanças profundas no Brasil?
Olívio Dutra – Lembro de um cidadão da Bossoroca (cidade gaúcha das Missões, terra natal de Olívio) que tinha 90 e tantos anos e dizia: “Coragem não me falta, me falta ar”. Não faltou coragem nos dois mandatos do Lula e neste que está se desenrolando com a Dilma. Mas é bem verdade que não rompemos com conjunturas adversas. Acabamos contemporizando sob a alegação da governabilidade, tendo que construir uma maioria não programática no Congresso, tanto no primeiro quanto no segundo governo do Lula, e até mesmo agora. Mesmo havendo coragem para enfrentar os desafios de um país tão grande e com desigualdades imensas, esta maioria não programática sempre puxou para baixo a execução de um pro-grama que enfrentasse com radicalidade situações de desigualdade que penalizam milhões de brasileiros. Então, penso que coragem não faltou.
E política evidentemente se faz com coragem, mas também com clareza dos objetivos. Por isso, penso que ainda há muito o que fazer. Estamos devendo muito ao povo brasileiro, mesmo que tenhamos conquistados direitos sociais, melhor distribuição da renda, oportunidade de emprego e trabalho regular. Mas não fizemos, por exemplo, a reforma agrária com a radicalidade necessária. Com a maioria que constituímos, não fizemos nenhuma das reformas fundamentais do Estado. Temos uma grande dívida pela frente, mesmo que tenhamos conquistado melhores condições de vida e de protagonismo político de milhões de brasileiros.
Como o senhor mesmo diz, apesar dos avanços nas áreas econômica e social, os governos Lula e Dilma não enfrentaram questões estruturais. Foi por causa da governabilidade ou o projeto do PT no poder acabou sendo não enfrentar estes temas?
Sou um dos fundadores do PT e até hoje não vi nenhuma instância do partido se decidir por um projeto que fique estacionário ou que se condicione às conjunturas. Se isso está andando, é por conta de alguns setores que estão se contemplando com o que já se conquistou. Se pensamos que dialogar com amplos setores da sociedade brasileira é suficiente, que isso abre espaços e reduz pressões, o projeto vai ficando, na sua realização, cada vez mais longe. O horizonte vai ficando mais distante. E isso sem ter tido uma discussão.
Qual é o papel de um partido de esquerda e do socialismo democrático em sendo governo e tendo representação política para enfrentar um Estado que não é o que acolhe um projeto de transformação social? Não mexemos na estrutura deste Estado, que continua sendo uma cidadela dos grandes interesses econômicos e culturais. As elites se sentem muito contrariadas em terem tido a fraqueza de deixar o povo brasileiro eleger um metalúrgico para a Presidência da República, e agora uma mulher que vem de uma luta que não é a luta que eles sempre patrocinaram. Mas isso não os impede de continuar tendo poder. Porque poder não é apenas estar no governo. O protagonismo do povo brasileiro ainda precisa ser estimulado, provocado. Nós chegamos no governo e de certa forma contemporizamos com as coisas.
Os movimentos sociais têm presença nos conselhos aqui e acolá, mas isso garante força para os movimentos sociais e mobilização ampla que um governo de transformação precisa ter na base da sociedade para poder avançar? Isso não temos respondido como partido. Aliás, qual o projeto que a esquerda brasileira tem para o país, não apenas para ganhar eleições? Como a esquerda vê o Brasil e a possibilidade de transformá-lo? E estabelecer entre si compromissos e poder alternarse por dentro da esquerda, e não a esquerda disputar esta ou aquela eleição e depois ter que fazer negociações em que o seu projeto se estilhaça e o horizonte da transformação fica cada vez mais distante.
O PT é o maior partido de esquerda do país e não nasceu de gabinetes, mas está cada vez mais dependente destes nichos de poder dentro de um Estado que está longe de ter esse controle público e popular efetivo. E estamos gerindo esse Estado. É uma discussão séria que precisamos nos debruçar sobre ela. O PT tem que fazer a obrigação de fazer isso. Não esgotou este projeto na medida em que não se tornar um partido da acomodação e se mantiver como partido da transformação.
O senhor defende a necessidade de a esquerda, não só o PT, discutir o que quer para o Brasil.
O PT aceitou o jogo democrático, mas a democracia não é estática, é um processo. Temos que estabelecer formas de ir desmontando a lógica do Estado que funciona bem para poucos e mal para a maioria. Temos que discutir como agir por dentro do Estado, em um processo democrático, mas não perdendo o objetivo estratégico de ganhar força na base da sociedade, semear transformações. Não temos que sair com um tijolo em cada mão, ou dando murro em ponta de faca, mas temos que ter consciência que o partido tem de ser uma escola política. Pode haver uma alternância entre as figuras dos diferentes partidos de esquerda, desde que haja um compromisso de sequência do projeto de transformação, e não de acomodação. Nosso partido tem que tirar lições dos governos que já exercemos, mas não ficar se autoelogiando e nem se remoendo. Há uma realidade a ser enfrentada. E é preciso ter povo mobilizado constantemente, não como massa de manobra, mas para for-mar uma base de sustentação.
O senhor acredita que ainda haja espaço para isso no PT? O senhor e outros dirigentes vêm defendo uma retomada de velhas tradições do PT, mas não é ilusório imaginar que o partido voltar a ser algo que já não é mais?
Eu não prego este retorno, mas também afirmo que, sem raízes, uma árvore não tem tronco com seiva sufi ciente para sustentar a galharia lá em cima. E essas raízes são as lutas sociais e populares, de um período histórico importante do país, no qual se originou esse ambiente de fundação do PT. A conjuntura mundial é desafiadora. Vamos buscar apenas nos adaptar? Não é uma oportunidade de darmos um salto? O PT tem que debater isso.
As instâncias partidárias afrouxaram-se de tal maneira que inclusive tivemos pessoas importantes do PT que cometeram políticas que não se diferenciam das políticas tradicionais que sempre condenamos, sob alegação da governabilidade e essas coisas todas. Isso não pode ser culpa apenas desta ou daquela figura, mas as estruturas partidárias não estavam suficientemente atentas ou atuantes, e se criaram essas situações em que as pessoas pensavam que podiam fazer ou desfazer coisas que depois se justificariam pelos objetivos. E isso levou a essa situação que estamos sofrendo, que é a Ação Penal 470, o chamado mensalão, que não pode ser o objetivo do nosso debate ficar remoendo, acusando aqui ou ali, mas se superando.
Achar que podemos comprar e vender opinião, comprar e vender posições, comprar e vender votos, isso é o pior da política, que tem desgraçado o povo brasileiro e desqualificado as instituições políticas. O PT jamais poderia ter feito isso mas pode, daqui para frente, se assumir como partido da transformação e não da conciliação.
Apesar das críticas ao julgamento do mensalão, o governador gaúcho Tarso Genro vem afirmando em artigos que o partido deve mudar de agenda. É o que o senhor está dizendo também?
O partido não deve ficar se justificando, mas não deve também colocar a cabeça no chão como avestruz. Tem que assumir que houve erros de conduta política. Não é condenar Fulano ou Beltrano, mas assumir que em uma situação tal, as instâncias do partido não foram capazes de não se deixar aprovar por condutas assim. E ir adiante, evidentemente. Penso que a política para nós tem que ser a construção do bem comum, com protagonismo das pessoas. O Estado, para funcionar bem, tem que estar sob controle público efetivo. Esse é um objetivo, colocar o Estado sob controle da sociedade. E para isso é preciso ter espaço para os movimentos sociais, instigá-los dentro da sua autonomia. Um governo tem limites para executar coisas, mas não pode submeter os movimentos sociais a esses limites que tem na institucionalidade.
O Brasil de Fato foi lançado durante o Fórum Social Mundial. O balanço que o senhor faz do FSM e das coisas que aconteceram no Brasil e na América Latina nestes dez anos é otimista ou pessimista?
É realista. Há avanços importantes, que não fossem as edições do FSM não teriam acontecido. Agora, há coisas que poderiam ter ido mais longe. O FSM também não pode ficar atrelado e dependente de governos, mesmo que sejam governos sérios e comprometidos com as lutas sociais. O Fórum tem que ter for-mas de fazer com que suas deliberações ecoem nas instâncias supranacionais, nos organismos internacionais. O fato de o FSM ter perdido um pouco do foco, porque se mundializou, passou a acontecer em diferentes locais e depois ter encontros maiores, continentais, para depois ter um encontro global, tem que ser revisto, para não se perder.
E qual o balanço realista que o senhor faz da imprensa alternativa brasileira neste período?
Cresceu muito, eu penso. Temos muitos veículos alternativos, mas qual é o conteúdo, o que estão provocando? Pen-so que esse florescimento de uma imprensa alternativa é um caminho importante para enfrentar os grandes grupos econômicos que lidam com a informação. É preciso ter uma miríade de fontes alternativas de informação e comunicação. Mas precisam ter uma visão, não é cada uma no seu território, na sua categoria, é preciso ter uma visão de como as coisas se relacionam, se interligam. E isso também é papel dos partidos políticos, instigar essas relações e a qualificação da intervenção. Temos um governo com problemas sérios na relação com os grandes grupos econômicos e a grande mídia.
A grande mídia se alimenta das contas de publicidade do governo e das empresas públicas. Enquanto isso, para jornais e veículos alternativos sobram migalhas. São questões políticas e precisam ser encaradas. Isto é uma dívida que ainda não saldamos.
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