Sábado, 29 de outubro de 2016
Os meses que se seguiram ao afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República desvelaram de modo muito claro os reais objetivos da iniciativa golpista, destinada não somente a destituir sem razões legais a presidenta eleita pelo voto popular, mas a criar as condições necessárias para imposição do mais completo pacote de maldades contra o povo brasileiro no período posterior à redemocratização.
Avança a passos céleres o desmonte do Estado Democrático de Direito. Por iniciativas dos Três Poderes da República, vão sendo paulatina e rapidamente retirados ou restringidos direitos fundamentais consagrados pelo texto constitucional.
Enquanto os trabalhadores e os pobres do país são designados para pagar a conta da crise econômica, o Estado brasileiro atua com peculiar avidez para ampliar ainda mais as benesses econômicas das elites nacionais e estrangeiras e para sufocar todas as formas de dissidência política, seja ela oriunda dos partidos progressistas ou de movimentos populares.
A Proposta de Emenda à Constituição – PEC 241/2016, já aprovada em dois turnos pela Câmara dos Deputados e remetida para votação no Senado, escamoteia a circunstância de que 45% do orçamento brasileiro é destinado ao pagamento de juros da dívida pública e, ante o argumento falacioso de necessidade de contenção dos gastos públicos, impõe ao país um novo regime fiscal que impede o aumento real dos investimentos federais em áreas sociais como educação e saúde por nada menos que 20 anos. Não foi sem razão que a proposta recebeu a alcunha de PEC do fim do mundo.
No âmbito do Executivo e do Legislativo, apenas para citar mais alguns exemplos representativos da catástrofe em curso, tramitam ainda outras iniciativas versando sobre reformas na educação, do que é exemplo a Medida Provisória do Ensino Médio, emendas à Constituição e projetos de lei que visam abolir direitos trabalhistas e previdenciários e, ainda, modificações da legislação sobre petróleo, cujo objetivo é entregar a exploração dos campos de pré-sal para empresas estrangeiras.
A participação do Poder Judiciário no concerto golpista fica, a cada dia, mais evidenciada. Para citar apenas dois dentre os diversos julgamentos escandalosos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal recentemente, observa-se que o suposto guardião da Constituição, ao determinar a obrigatoriedade imediata do corte de salário dos funcionários públicos em greve, golpeou mortalmente um dos mais importantes direitos dos trabalhadores. Noutro passo, ao autorizar a prisão automática em decorrência de condenação criminal em segundo grau de jurisdição, fulminou o princípio da presunção de inocência, uma garantia universal dos acusados em face das arbitrariedades do Estado.
Sob o manto do sacrossanto discurso da necessidade de combate à corrupção a qualquer custo, com a adoção de medidas em total desrespeito a princípios constitucionais básicos de direito penal e processo penal, no âmbito das investigações e do processo da denominada Operação Lava Jato, incontáveis ações arbitrárias foram realizadas e forneceram uma parte fundamental do arsenal de argumentos falaciosos que respaldaram a destituição de Dilma Rousseff do poder.
Para perplexidade de quem ainda nutria expectativas quanto à validade dos preceitos do Estado Democrático de Direito no país, num passo sincronizado com a agenda política do golpe, chegamos ao ápice de ver divulgado o conteúdo de grampos ilegais de conversas telefônicas da Presidência da República.
Instado a manifestar-se sobre essa máxima arbitrariedade, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região respaldou a medida ilegal, aduzindo que, em razão de as investigações da Operação Lava Jato constituírem caso único e excepcional no Direito brasileiro, o desrespeito aos princípios e às regras destinados a garantir os direitos dos acusados e a impor freios ao poder punitivo estatal estariam autorizados, facultando ao magistrado de primeiro grau a decisão sobre a aplicação de normas constitucionais e processuais vigentes.
Nessa vereda que não parece ter um fim, a Operação Lava Jato segue com sua atuação seletiva contra determinada parcela de membros da classe política e com a realização de medidas judiciais sem amparo legal, do que são exemplos as buscas e apreensões ilícitas e a decretação de prisões preventivas desnecessárias, cujo objetivo primordial é forçar prisioneiros a assinarem acordos de delação premiada para livrarem-se o quanto antes do cárcere.
Com forte viés populista, enquanto os desmandos da Operação Lava Jato seguem sendo exaustivamente divulgados e conquistam corações e mentes dos mais desavisados e também de uma parcela da sociedade que se proclama progressista, as forças de segurança atuam nas sombras da democracia de modo cada vez mais coeso, fazendo da truculência a arma utilizada contra manifestações populares que denunciam a ilegitimidade do governo e exigem a manutenção e eficácia dos direitos conquistados a custa de muita luta e sofrimento do povo brasileiro.
Neste assombroso ambiente em que demônios antes adormecidos caminham altivos pelas ruas cinzentas do país, um sopro de esperança surge das destemidas mobilizações protagonizadas pelos jovens brasileiros.
Até o momento em que este texto foi redigido, 1100 escolas, 51 universidades públicas e 82 institutos federais haviam sido ocupados contra o desmonte do ensino público e contra a PEC 241.
“Os colégios do Paraná e do Brasil estão ocupados pela educação. Nós não estamos lá para fazer baderna, nós não estamos lá de brincadeira. Nós estamos lá por um ideal, nos estamos lá porque a gente acredita no futuro do nosso país. Esse país é nosso. Vai ser dos meus filhos, vai ser dos filhos dos meus filhos, e eu me preocupo com esse país“.
Essas palavras, proferidas em tom embargado pela jovem secundarista Ana Júlia Ribeiro aos embolorados parlamentares paranaenses, mais que arrancar de nossos olhos lágrimas quentes de orgulho, deveriam servir de antídoto contra a apatia disseminada na sociedade e de combustível para a urgente e inadiável ampliação da resistência popular contra os nefastos objetivos do golpe.
Giane Ambrósio Álvares é advogada, mestre em Processo Penal pela PUC/SP e membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares.
Escreve na Coluna ContraCorrentes, aos sábados, junto a Patrick Mariano, Rubens Casara, Marcelo Semer e Marcio Sotelo Felippe.
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