Heloisa Cristaldo - Repórter da Agência Brasil
O traço livre do arquiteto idealizou uma cidade igualmente fluída. Entretanto, ao completar 56 anos nesta quinta-feira (21), a capital federal tem se tornado cada vez mais fechada e distante de seu plano original. Para área central de Brasília, Lúcio Costa projetou uma área em que “os vazios são por ele preenchidos, sendo a cidade deliberadamente aberta aos 360 graus do horizonte que a circunda”.
Sem o efetivo controle das autoridades públicas, a cada dia a cidade cerca-se com grades, tapumes, cercas vivas e condomínios fechados, opondo-se ao objetivo de Lúcio Costa, de criar uma cidade parque. O local proporcionaria um conforto ambiental, aumentando a percepção da cidade no sítio, a partir de seu próprio espaço.
Cercado há mais de três anos por motivo de segurança, o Supremo Tribunal Federal (STF) não tem previsão de ter as grades retiradas. Localizada na Praça dos Três Poderes, a Corte não está sozinha em sua preocupação de evitar riscos ao patrimônio público e seus membros. Alguns metros à frente, o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional também têm cercas instaladas, limitando o acesso dos turistas e manifestantes.
“Trata-se de segurança nacional, é território onde não se tem uma vida urbana como teria no centro de Salvador, Rio de janeiro, São Paulo. Não tenho dúvida que é impossível se proteger de todas as formas de ameaças à integridade física, à ordem dos trabalhos da atividade pública. Não é um fenômeno novo, sempre aconteceu o cercamento por razões de segurança. Enquanto houver Brasília, isso vai acontecer”, explica Frederico Flósculo, professor do Departamento de Projeto, Expressão e Representação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB).
Para o professor aposentado em Teoria e História da Urbanização da UnB, Antonio Carlos Carpintero, o cercamento é uma agressão à Brasília e afasta o cidadão dos poderes públicos. “O Supremo Tribunal Federal é o caso mais grave, a praça foi reduzida e ficou descaracterizada. Cria-se uma situação de distanciamento cada vez maior entre o povo e o poder”, assegura.
Carpintero explica que na construção da cidade, o lugar que seria próprio para manifestações populares foi desviado e acabou sendo abolido. “O Palácio do Planalto e o STF foram construídos totalmente abertos. Isso foi se colocando a partir da década de 80, inclusive na plataforma do Congresso, que era aberta. Esse é o medo governamental de ser atacado. No fundo, no Brasil, não há razão para se pensar em ataques ao governo. Por mais que haja crises, a gente se resolve democraticamente”, diz.
A cidade tem o título de Patrimônio Cultural da Humanidade e desde 1987 é considerada Patrimônio Mundial, sendo o único bem contemporâneo a merecer a distinção. A cidade é considerada um marco da arquitetura e urbanismo modernos e tem a maior área tombada do mundo – 112,25 km².
“O reconhecimento acabou no título. O momento seguinte ao reconhecimento não foi feito, que era a elaboração de um plano de preservação dessa área patrimonial. Não tem providencia nenhuma da área a ser preservada. São praticamente 30 anos que Brasília é patrimônio da humanidade e os sucessivos governos locais não tiveram a competência de fazer um plano de preservação do conjunto urbanístico”, questiona Flósculo. Para o professor, a falta de cuidado com o plano original da cidade é uma “autossabotagem” dos moradores e governantes da capital federal.
O patrimônio cultural de Brasília é composto por monumentos, edifícios ou sítios que tenham valor histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou antropológico.
De acordo com o superintendente no Distrito Federal do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Carlos Madsen, o órgão fiscaliza as instalações inadequadas de cercamento em espaços públicos, mas esbarra em ações judiciais que impedem a retirada de grades ou outros tipos de barreiras.
“A preocupação do Iphan é constante, autua, fiscaliza. Todos se manifestam com o argumento de segurança nesse momento que o país está vivendo, com o ódio que se criou, a aversão que se criou ao outro. A sociedade brasileira está num momento em que esses órgãos têm um argumento sólido, que é a segurança”, defende.
Segundo Madsen, o Iphan deve lançar em maio uma cartilha para conscientização e preservação do patrimônio cultural do Distrito Federal. “A gente tem que trabalhar com uma questão educativa, pois não está conseguindo reverter isso. Não basta a questão punitiva, tem que ser educativa. Temos que sensibilizar e fortalecer o exercício da cidadania, assim a pessoa passa a valorizar o espaço. Estamos tratando de Símbolos da República, eles têm que prevalecer diante de qualquer outro símbolo. Aquilo é de todos, é o espaço público maior para o país”.
Cristiano Sousa Nascimento, da Organização Não Governamental Urbanistas por Brasília, destaca que o cercamento que teria caráter provisório tem se tornado permanente na cidade. “O que é justificado por uma agressão ou ameaça tem se tornado uma grade fixa e é por comodismo de retirar e colocar novamente. A gente estranha muito e há uma história de empurra, empurra entre as autoridades. Essas cercas passam a sensação de ameaça constante, o turista olha e fica assustado”, critica.
Para reverter o cenário de desconstrução do plano original, a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis) começou a diagnosticar em toda a área tombada — Brasília, Cruzeiro, Sudoeste, Candangolândia e Noroeste — as edificações que ferem o tombamento. A ação, em sua primeira fase, é educativa e tem seu foco em conscientizar os síndicos da importância de preservar o tombamento da cidade. A programação tem a duração de um ano.
A área residencial de Brasília, segundo o conceito de Lúcio Costa, seria outra praça. Nela, projeções de edifícios sobre pilotis dispostas livremente “abrem” o quarteirão tradicional de habitações, substituindo os limites de muros e edifícios pelas árvores. Seguindo a realidade dos edifícios públicos, a área também está se fechando.
“A superquadra foi pensada para ser aberta, com uso franco, ir e vir pleno. As pessoas estão começando a usar uma série de artifícios, que vão na contramão no conceito da cidade, com um abuso de uso e ocupação do solo”, diz Frederico Flósculo.
Segundo Flósculo, a palavra-chave para manutenção dos patrimônios da cidade é educação.“Não tem preservação se não trabalhar a autoestima da cidade e de quem vive nela.”
“Falta informação e orgulho”, acrescenta Cristiano Nascimento. “As pessoas ainda não perceberam que não há nada como o Plano Piloto, que é uma coisa única e que não vai acontecer de novo. Não existe outra igual no mundo. Em Brasília conseguiu-se construir uma cidade diferente de todas as outras. Enquanto as pessoas não acordarem, não se orgulharem e não tiverem essa visão, a preservação fica mais complicada”, conclui.
Edição: Beto Coura
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