Postado em 20 Apr 2014
Na segunda matéria especial de nossa série sobre o caso da “Helicoca”, Joaquim de Carvalho fala das incongruências, suspeitas e desencontros relativos à investigação e ao processo da apreensão de cocaína no helicóptero dos Perrellas.
A série é resultado de um projeto de crowdfunding do DCM.
O processo que os servidores da Justiça Federal do Espírito Santo apelidaram de “Helicoca” nasceu do inquérito policial número 666/2013, aberto no dia 25 de novembro de 2013 e encerrado em 17 de janeiro de 2014. Em 53 dias, os policiais interrogaram 17 pessoas, entre eles os quatro presos em flagrante, e juntaram 44 documentos.
Mas aquela que é até agora a prova mais interessante do crime não é encontrada no inquérito, mas no YouTube. Trata-se de um vídeo de quase 13 minutos, em que um agente da Polícia Federal registra toda a ação.
O DCM teve acesso ao processo sigiloso em que o Ministério Público Federal diz que a investigação da “Helicoca” começou com uma farsa.
O vídeo da apreensão tem início quando desponta no céu da zona rural de Afonso Cláudio, no interior do Espírito Santo, o helicóptero cor de berinjela com faixa dourada e o prefixo GZP – G de Gustavo, Z de Zezé e P de Perrella, as iniciais de seus proprietários, o deputado estadual Gustavo Perrella, do Solidariedade, e o senador Zezé Perrella, do PDT, pai e filho.
É fim da tarde de domingo, 24 de novembro. A câmera é operada por um homem escondido atrás de um pé de café. O ronco do motor e o barulho da hélice não encobrem a fala do policial, que tem forte sotaque carioca e se comunica por rádio com equipes a postos para o flagrante.
As imagens, feitas de longe, são tremidas, o que mostra a falta de um apoio, um tripé. Aparece um carro branco, com porta-malas aberto, e mais duas pessoas, um de camisa rosa, que mais tarde seria identificado como o empresário Robson Ferreira Dias, do Rio de Janeiro, e outro de camisa verde clara, mais tarde identificado como Everaldo Lopes Souza, um sujeito simples, que se diz jardineiro, ligado a um empresário de Vitória, Élio Rodrigues, dono da propriedade onde a aeronave deveria ter pousado. Na última hora, o helicóptero acabou descendo na propriedade vizinha, que não é cercada.
A três minutos e quarenta segundos, o policial narra:
— Estão tirando a droga. O piloto correu para pegar o combustível e eles estão colocando a droga dentro do carro. O motor não foi cortado, o motor da aeronave não foi cortado. Estão carregando a droga na mala do carro, o motor não foi cortado, o copiloto foi buscar os galões. Cadê o helicóptero da PM?
A câmera volta para o plano aberto e fecha de novo na cena, muito tremida.
— São vários sacos pretos. Tem muita coisa, galera, muita coisa… vários sacos pretos. Eu acho que o piloto cortou… cortou o motor! Um segundo…Negativo, o piloto não cortou o motor… está descarregando a droga, e está começando a abastecer o primeiro galão.
Alguns segundos depois, avisa, triunfante:
— Positivo! Positivo! Cortou o motor, o helicóptero cortou o motor! Vamos lá, galera, pode ir. Quem conseguir pode ir. Vamos lá, tenente! Pode ir, Serra (com a pronúncia fechada, Sêrra). Eles estão abastecendo. Tem que ser rápido, tem que ir rápido!
Já são 7 minutos de gravação, a hélice para. Mais tarde, as imagens mostram três homens carregando a droga para o porta-malas do carro. Um deles está de camisa branca, que não aparece nas imagens anteriores. É Rogério Almeida Antunes, o piloto do senador Zezé Perrella e do deputado Gustavo Perrella. O outro piloto, Alexandre José de Oliveira Júnior, de camisa preta, não aparece nesta imagem. Ele se afastou para pegar mais combustível.
Imagens tremidas mostram a mata. Ouve-se chiado no rádio. Quando a câmera volta para a cena principal, mostra os acusados de tráfico com as mãos na cabeça, se abaixando. Tudo muito tranquilo.
— Positivo, positivo! Estão todos eles dominados. Vamos embora, tenente. Adianta o pessoal para dar apoio lá. Dominados lá os vagabundos. Parabéns, equipe, parabéns. Iurruuuuú. O show tá doido, maluco! DRE te pega, parceiro!
DRE é a sigla de Delegacia de Repressão a Entorpecentes, órgão da Polícia Federal. A câmera é desligada e volta com a imagem da droga no porta-malas e no banco traseiro do carro.
O vídeo foi apresentado à Justiça pelo procurador da República Fernando Amorim Lavieri como indício de crime. Não o de tráfico, demonstrado no inquérito, mas de fraude processual e falso testemunho. Nesse caso, os criminosos seriam os policiais que fizeram a prisão.
Na denúncia que transforma os policiais de caçadores em caça, o procurador Lavieri diz que desde o início desconfiou da versão da polícia para o flagrante. E procurou o responsável pelo inquérito, delegado Leonardo Damasceno, em busca de esclarecimento, quando teria ouvido a versão de que o flagrante era, na verdade, resultante de uma interceptação telefônica realizada em São Paulo.
O procurador também conversou com um agente da PF, Rafael Pacheco, que teria confirmado a versão do delegado Damasceno e acrescentado que, em São Paulo, a Justiça e o Ministério Público, “sensíveis ao flagelo do tráfico”, teriam autorizado interceptações telefônicas abrangentes, criando uma verdadeira “grampolândia”, daí resultando na apreensão da droga no helicóptero de Perrella.
Como os dois negaram na Justiça a versão de Lavieri, o procurador pediu afastamento do caso e se colocou na condição de testemunha do processo. Um testemunho que só serve como argumento para a defesa pedir a anulação do processo, como de fato já pediu.
O caso foi parar na mesa de outro procurador, Fábio Bhering Leite Praça, que estranhou a posição do colega Lavieri e recorreu à Procuradoria Geral da República em Brasília, na Câmara de Recursos. Ele não concorda com o afastamento do procurador Lavieri.
Entre seus argumentos, Fábio aponta para a fragilidade da denúncia formulada por ele. Se Lavieri tinha a notícia de uma ilegalidade, deveria ter agido, mandando investigar, como titular de uma instituição que tem a atribuição constitucional de exercer o controle externo da polícia.
A Câmara de Recursos deu razão ao procurador Fábio, e Lavieri, mesmo contrariado, voltou ao processo e participou de uma audiência por teleconferência, no dia 3 de abril.
Lavieiri está na sala de audiência da Justiça Federal em Vitória, ao lado do juiz, e duas testemunhas de defesa do piloto Alexandre José de Oliveira Júnior se encontram no fórum em São Paulo, na região da Paulista. Quase mil quilômetros separam os três, que se veem em monitores de TV.
O juiz dá a palavra ao procurador.
— Só uma pergunta…
A câmera gira na direção de Fernando Lavieri e mostra um homem que veste terno cinza, camisa e gravata de tom azul. Ele está de braços cruzados e arqueado sobre a mesa. Com a câmera apontada para sua direção, se recompõe, ajeita o microfone e questiona a testemunha, instrutor de voo na escola de Alexandre:
— O senhor conhecia o Alexandre em 2006, o senhor falou?
— Afirmativo. Eu tinha uma escola, era proprietário de uma escola. O meu sócio, Marcos Lázaro Luz, cursava o curso de avião civil na Faculdade Anhembi Morumbi, e ele era colega de classe de aula desse meu sócio, e por causa disso ele frequentava a minha escola para visitar o meu ex-sócio.
O procurador da República faz outra pergunta:
— E nessa época em que o senhor conheceu ele (sic), quando ele começou, ele aparentava ser uma pessoa com bastante dinheiro, com muitas posses?
— Não. Não, senhor. Nunca aparentou.
— Está bem, eu agradeço – o procurador diz e afasta o microfone.
O juiz retoma a palavra e pergunta se os réus têm alguma pergunta. Diante do silêncio, determina o encerramento do depoimento.
Com o fim da videoconferência, a câmera é desligada. As testemunhas são dispensadas em São Paulo, juntamente com um dos advogados de Alexandre, Heraldo Mendes de Lima. Mas, em Vitória, a audiência continua. Heraldo deixa o prédio na rua Ministro Rocha Azevedo sem fazer ideia da bomba que o juiz lançaria diante do advogado de Alexandre em Vitória, Marco Antônio Gomes.
Heraldo, parceiro de Marco Antônio na defesa de Alexandre, já foi policial civil e se dedica quase exclusivamente ao Direito Criminal. Ele sabe que, em processos de tráfico, os juízes costumam ser mais rigorosos. A expressão “flagelo do tráfico” é bastante comum nas ações desse tipo.
Meu primeiro contato com Heraldo foi na véspera da audiência por videoconferência. Ele aceitou conversar comigo numa churrascaria da avenida São João, quase esquina com o Largo do Arouche, em São Paulo. Era noite, por volta das 22 horas. Quando cheguei, ele conversava numa mesa com mais seis pessoas, cinco homens e uma mulher. Fiquei numa mesa próxima.
Quinze minutos depois, Heraldo se juntou a mim, com mais dois advogados. Os outros quatro que dividiam a mesa com ele saíram. Heraldo admitiu a dificuldade em que se encontrava seu cliente, diante do flagrante de tráfico.
— O [Alexandre] Júnior se envolveu nesta aventura para salvar a empresa dele, que estava em dificuldade. O Júnior não é traficante, afirmou. Os pais são evangélicos, da Congregação Cristã”, acrescentou, como se a religião da família fosse o argumento definitivo em favor do bom comportamento do piloto.
A audiência por videoconferência no dia seguinte era uma tentativa de confirmar a tese de que a empresa estava em dificuldade: as duas testemunhas são ex-funcionários de Alexandre.
Em Vitória, com a câmera da videoconferência desligada, o juiz se volta para o advogado Marco Antônio Gomes e diz:
— Estou suspendendo o sigilo de um procedimento aberto por conta de um ofício do MPF. A denúncia de Lavieri a respeito da suposta escuta clandestina tinha saído de Vitória e chegado a Brasília, já tinha gerado mais de 150 folhas, mas tudo isso tramitava sem o conhecimento dos advogados. Era um procedimento secreto, que correu paralelamente ao inquérito da Polícia Federal.
Marco Antônio Gomes pergunta:
— Que procedimento?
O juiz explica, então, a denúncia do procurador.
— Vi na hora que o processo todo poderia ser anulado, comenta o advogado. Era o caso de pedir a prisão dos policiais que inventaram a história de que o flagrante foi fruto de uma investigação em Afonso Cláudio, diz Marco Antônio.
Ele ficou ainda mais surpreso quando o procurador, que em tese atua do lado contrário ao da defesa, se aproximou e perguntou se conhecia os advogados dos demais réus.
Marco diz que considerou a conversa do procurador “inusitada”. “O procurador não tem que se preocupar com a defesa. Em geral, eles querem que o advogado perca prazo, não tenha argumentos, enfim, perca no processo”, afirma.
Marco Antônio leva o processo para o escritório, manda imprimir as folhas copiadas em seu pen drive e lê toda a peça. Anota, cuidadosamente, as partes mais pesadas.
— Vi que estava diante de um escândalo.
Na segunda-feira seguinte, 7 de abril, na audiência em que, pela primeira vez, os acusados de tráfico teriam a oportunidade de falar diante do juiz, o procurador Fernando Lavieri não estava presente. A razão é que, entre quinta e sexta-feira, 4 e 5 de abril, obteve uma decisão favorável do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, onde o seu pedido foi parar. Estava oficialmente autorizado a abandonar a ação e se tornar testemunha em potencial dos advogados de defesa dos traficantes.
No seu lugar, deveria comparecer o procurador Fábio Bhering, mas este já tinha um compromisso oficial agendado. O caso foi para as mãos do coordenador do Núcleo Criminal da Procuradoria da República em Vitória, Júlio de Castilhos Oliveira Costa. Mas, na véspera, o filho dele nasceu e, de licença paternidade, determinou à procuradora Nadja Machado Botelho que representasse o Ministério Público Federal.
Nadja chegou à audiência avisando ao juiz que não sabia nada do processo, o que é natural, já que recebeu a missão na véspera. Mas conhecimento não seria mais tão importante naquele momento.
Marcus Vinícius Figueiredo de Oliveira Costa, titular da 1ª Vara Federal Criminal de Vitória, abriu a audiência com a comunicação de que mandaria soltar os réus, pela denúncia de que o processo pode estar contaminado por grampo ilegal. Os réus foram soltos sem prestar depoimento à Justiça. Saíram como entraram: calados.
Em Vitória, procurei Fernando Lavieri, na sede do Ministério Público Federal. Ele estava lá, mas não quis me receber. Enviou a assessora de imprensa, que me entregou a cópia de um jornal local, A Tribuna, em que era publicada uma nota do Ministério Público, muito vaga. Fernando Lavieri havia pedido afastamento do processo por considerar insustentável o grampo ilegal.
Diz o jornal: “Por meio de nota, o MPF/ES informou que não é um órgão meramente acusador, pois a ele ‘interessa um processo justo, baseado em provas lícitas’”.
Falei por telefone com o delegado Leonardo Damasceno, sobre quem recaem as suspeitas do procurador Lavieri. “Não fizemos nada de errado”, disse, recomendando a leitura da nota em que a Superintendência da Polícia Federal no Espírito Santo se diz “orgulhosa” por tirar de circulação quase meia tonelada de cocaína.
Na entrevista, ele voltou a isentar os Perrellas de envolvimento no tráfico internacional de cocaína. “Está tudo nos autos. Quem não quiser acreditar tudo bem. Cada um acredita no que quiser”.
Leonardo Damasceno é de uma família de funcionários públicos. Seu irmão, auditor fiscal em Minas Gerais, ocuparia um cargo de confiança no governo mineiro. Sobre a hipótese de conflito de interesses, já que Zezé Perrella, dono do helicóptero, é aliado político de Aécio Neves, líder político no Estado, Leonardo diz:
— Não tenho ideia do que fazem meus irmãos. Ilações todo mundo faz. Dizem, por exemplo, que por eu ser Galo (torcedor do Atlético Mineiro) não poderia defender alguém que é do Cruzeiro (Perrella é o manda-chuva do clube).
Leonardo apareceu muito nos dias que se seguiram à apreensão da droga, na maioria das vezes para descartar o envolvimento do senador e do filho de Zezé Perrella, Gustavo, que é deputado estadual.
Parecia empenhado na investigação, mas o fato é que, depois da entrevista em que isenta Perrella, entrou de férias e quem assina o relatório final do inquérito é a delegada Aline Pedrini Cuzzuol.
Sobre o flagrante em Afonso Cláudio, Leonardo não quis entrar em detalhes.
— Está tudo no inquérito.
Há pelo menos uma informação furada no inquérito. O valor da propriedade comprada para o pouso e, talvez, a guarda da cocaína não é alto para os padrões do mercado local. Pelo contrário. Élio Rodrigues, apontado pela PF como o quinto elemento da quadrilha, fechou o negócio por R$ 500 mil. Deu R$ 100 mil de entrada e ficou de pagar o restante quando a propriedade estivesse em condições de ser registrada em seu nome. O proprietário anterior tinha uma dívida com o Banco do Estado do Espírito Santo que impedia a transferência em cartório.
Na região, o preço de uma propriedade como aquela, com quase 14 alqueires, pode ir até R$ 700 mil, segundo consulta que eu fiz junto a outros proprietários de terra. A fazenda tinha ainda 80 cabeças de gado leiteiro, a preço de R$ 2 mil reais cada. Como Élio comprou o sítio com porteira fechada, isto é, animais e benfeitorias ali presentes, a fazenda, a preço de mercado, poderia valer até R$ 860 mil.
— Por 500 mil, foi um negócio mais ou menos, conta um agricultor de Afonso Cláudio.
Não é verdadeira, portanto, a versão assumida pelo serviço reservado da Polícia Militar de que começou a investigar Élio depois que vizinhos desconfiaram do alto preço pago pela fazenda que seria utilizada na operação de tráfico.
Um policial de São Paulo, que tem experiência na investigação de narcóticos, acha que a prisão em Afonso Cláudio foi “serviço dado” ou resultado de grampo. “Sabiam que os caras chegariam naquele helicóptero. E com droga carregada no Paraguai”, afirma.
O procurador apresentou o vídeo do YouTube para mostrar que a polícia sabia previamente do helicóptero e da droga.
É só prestar atenção no que narra o policial que faz os registros com a câmera.
Quem entregou os traficantes? E com que objetivo? Foi mesmo um grampo ilegal?
São perguntas que a Procuradoria da República poderia tentar buscar, mas, analisando o trabalho do procurador relacionado a esse caso, vê-se que ele escreve muito mais a respeito da suspeita de utilização de prova ilícita do que do tráfico em si. Ou seja, o processo que poderia ser mortal para os acusados – os cinco conhecidos e outros que poderiam ser apontados – já nasceu com um antídoto: a investigação sigilosa que, revelada às vésperas do julgamento, colocou todo mundo na rua e pode provocar a nulidade do processo.
Para os acusados de tráfico, independentemente de quais sejam os motivos, a hipótese de anulação do processo é recebida como um milagre. Na tarde em que o juiz decidiu libertar os réus, sem ouvi-los, a mãe do piloto Alexandre José de Oliveira Júnior estava em casa, no bairro de Itaquera, em São Paulo.
Quando o advogado telefonou, descobriu que ela estava orando. A mulher, segundo ele, fez pedido próprio de quem espera pela condenação.
— Cuida do meu filho, doutor.
— A senhora mesmo vai cuidar dele, porque ele vai para casa.
— Milagre! – disse a mulher, entre lágrimas.
Evangélica, a mãe de Alexandre deve saber que 666, o número do inquérito da Polícia Federal, é também a marca da Besta que, segundo a Bíblia, aparecerá gravada nas mãos ou na testa das pessoas antes do juízo final.
No caso do inquérito em Vitória, 666 serviu para expor os demônios do sistema judiciário, em que procurador briga com procurador, delegado inocenta previamente suspeitos, e o juiz, um profissional preparado, com pós-graduação na Sorbonne, dá uma resposta sincera diante da pergunta sobre a impunidade nesse rumoroso caso.
— Eu continuarei juiz, você, jornalista e eles, traficantes.
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